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sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Saudades de Merquior...Roberto campos



"Aquele que procura a salvação das almas, sua e do próximo, não deve procurá-la nas avenidas da política."
(Max Weber)


No começo da década dos 80 eu era embaixador em Londres e resignava-me à fatalidade de ingressar na fase desengonçada da terceira idade. Tinha que tomar uma decisão de angústia existencial. Manter-me-ia fiel à vocação diplomática e tecnocrática, ou buscaria, ainda que tardiamente, as avenidas pecaminosas da política, tornando-me um policrata?
A diplomacia não mais me apresentava interessantes desafios. E estava cansado de explicar no exterior as confusas circungirações da política brasileira. Certa vez, exasperado com informações contraditórias sobre nossa política econômica, e com o gritante descompasso entre as diretrizes proclamadas e as políticas praticadas, telefonei ao Delfim Netto, velho amigo e então "czar" da economia, para dizer: "A imagem do Brasil no exterior, Delfim, não pode ser salva pela exibição da verdade, mas talvez possa ser melhorada pela coordenação de nossas mentiras.".

Confidenciei minha intenção de abandonar a diplomacia pela política, a um querido auxiliar, José Guilherme Merquior, extraordinário talento de filósofo e sociólogo, que em Londres era meu conselheiro de embaixada.

Numa longa noitada, regada a uísque, convencidos da velha sabedoria do provérbio irlandês de que a realidade é apenas uma ilusão provocada por uma aguda escassez de álcool, Merquior e eu procuramos compendiar algumas "leis da política".

Seria uma paródia das "leis de Kafka", fabricadas num artigo que eu escrevera nos anos 70 para a revista "Senhor". Algumas das "leis de Kafka" sobreviveram bem ao teste do tempo. Não foram "falsificadas" pela realidade (para usar a expressão popperiana). Uma delas é a "lei do limite geográfico da lógica", que assim reza: "tendo sido a lógica inventada pelos gregos no hemisfério norte, não tem aplicação ao sul do equador."
De fato, todas as invenções lógicas surgiram entre os paralelos 23 e 60 ou, mais precisamente, acima do trópico de Câncer. Nada têm a ver com o trópico de Capricórnio, onde vivemos. Nós outros estamos no reino do instinto, promovendo-o às vezes à dignidade da intuição. E ficando, na maioria das vezes, na província do palpite...

Sobrevive também à "lei newtoniana da burocracia": "toda ação de liberação provoca uma reação de controle burocrático, de igual intensidade, ainda que de forma disfarçada." Estabelece-se, por exemplo, um mercado livre de câmbio, mas quando ele começa a se comportar livremente, reagindo à oferta e à procura, intervêm as autoridades para discipliná-lo, alegando que os capitais são demasiado voláteis.

Também resistente ao teste do tempo é a "lei da transferência de culpa". Ela postula "que é menos importante encontrar soluções do que ter bodes expiatórios". Imperialismo americano, capitalismo e dívida externa foram durante muito tempo bodes expiatórios, explicativos de nossa inflação e subdesenvolvimento. O bode na moda é o neoliberalismo, acusação injustíssima num país onde sobrevivem monopólios estatais e onde o grau de intervenção na vida econômica é minudente e absurdo. O Banco Central, por exemplo, sofre de aguda diarreia normativa, constituindo-se num exemplo exacerbado de neodirigismo.

Voltemos agora às libações de Londres.

Merquior e eu raspamos a memória, à busca de dichotes históricos que nos permitissem compendiar algumas "leis da política". Lembro-me da seguinte coletânea de 11 leis:

1. A lei do presidente Charles De Gaulle: "as promessas só comprometem aqueles que as recebem.".

2. A lei de John Randolph, deputado e senador americano, pelo Estado de Virginia, e defensor da autonomia dos Estados: "o mais delicioso dos privilégios é gastar o dinheiro dos outros.".

3. A lei de Getúlio Vargas: "os ministérios se compõem de dois grupos: um formado por gente incapaz e outro por gente capaz de tudo.".

4. A lei de Homero: "Agamenon é pastor do povo. Como tal protege os rebanhos, mas também tosquia a lã e come a carne dos carneiros.".


5. A lei de Bismarck: "as leis são como as salsichas. É melhor não ver como elas são feitas.".

6. A lei de Nelson Rodrigues: "toda coerência é em princípio suspeita.".

7. A lei de Hubert Humphrey, vice-presidente dos Estados Unidos na administração de Lyndon Johnson: "é verdade que há vários idiotas no Congresso. Mas os idiotas constituem boa parte da população e devem estar bem representados.".

8. A lei de Montesquieu: "o político deve buscar sempre a aprovação, porém jamais o aplauso.".

E concluímos nossa noitada etílica com três leis pessimistas:

9. A lei de King Murphy: "não estão seguras a vida, a liberdade e a propriedade de ninguém enquanto a legislatura estiver em sessão.".

10. A lei do governador Mario Cuomo, de Nova York: "faz-se campanha em poesia e governa-se em prosa."

11. E finalmente, a lei Campos-Merquior: "a política é a arte de fazer hoje os erros de amanhã, sem esquecer os erros de ontem.".

Ao deixar a embaixada, em 1982, para me lançar candidato ao Senado por Mato Grosso, procurei aconselhar-me com um velho amigo e guru político, Jânio Quadros. Não bastava conhecer as leis da política. Era preciso informar-me sobre a tecnologia eleitoral. Como conquistar votos e adquirir o "cheiro de povo", indispensável nos comícios. Num almoço com Jânio, em sua casa de Guarujá, procurei ansioso abeberar-me dos ensinamentos desse gênio político. "A receita é simples", disse-me Jânio. "Faça coisas chocantes e inesperadas. Por exemplo: dê caneladas na imprensa bisbilhoteira, maltrate os funcionários públicos que tiranizam os contribuintes e passe pito nos bispos que se metem na política em vez de cuidar das almas. Na televisão, fale com voz escandida, como se fosse dono da verdade."

Saí desanimado. A receita era altamente idiossincrática. Funcionava para o Jânio, proprietário de carisma e inquilino do exótico. Seria desastre certo para um ex-seminarista e encabulado tecnocrata. Não segui a receita e consegui eleger-me a duras penas.

Após várias experiências eleitorais, não posso senão concordar com o que nos disse, a Merquior e a mim, num coquetel na embaixada em Londres, um parlamentar inglês que acabava de sair, financeiramente falido, de uma campanha eleitoral:

 "A democracia é uma coisa muito boa. Mas tem um defeito fatal: a gente tem de arranjar votos. Está ainda por surgir o maior dos gênios políticos: aquele que inventar a democracia sem votos."

Merquior morreu aos 49 anos, colhido pelas Parcas no auge de uma brilhante carreira acadêmica e diplomática, com obras seminais sobre sociologia e política, concebidas num ritmo de produtividade impressionante. A vida é injusta.

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