"Aquele
que procura a salvação das almas, sua e do próximo, não deve procurá-la nas
avenidas da política."
(Max Weber)
(Max Weber)
Confidenciei minha intenção de abandonar a diplomacia pela política, a um querido auxiliar, José Guilherme Merquior, extraordinário talento de filósofo e sociólogo, que em Londres era meu conselheiro de embaixada.
Numa longa noitada, regada a uísque, convencidos da velha sabedoria do provérbio irlandês de que a realidade é apenas uma ilusão provocada por uma aguda escassez de álcool, Merquior e eu procuramos compendiar algumas "leis da política".
Seria uma paródia das "leis de Kafka", fabricadas num artigo que eu escrevera nos anos 70 para a revista "Senhor". Algumas das "leis de Kafka" sobreviveram bem ao teste do tempo. Não foram "falsificadas" pela realidade (para usar a expressão popperiana). Uma delas é a "lei do limite geográfico da lógica", que assim reza: "tendo sido a lógica inventada pelos gregos no hemisfério norte, não tem aplicação ao sul do equador."
De
fato, todas as invenções lógicas surgiram entre os paralelos 23 e 60 ou, mais
precisamente, acima do trópico de Câncer. Nada têm a ver com o trópico de
Capricórnio, onde vivemos. Nós outros estamos no reino do instinto,
promovendo-o às vezes à dignidade da intuição. E ficando, na maioria das vezes,
na província do palpite...
Sobrevive também à "lei newtoniana da burocracia": "toda ação de liberação provoca uma reação de controle burocrático, de igual intensidade, ainda que de forma disfarçada." Estabelece-se, por exemplo, um mercado livre de câmbio, mas quando ele começa a se comportar livremente, reagindo à oferta e à procura, intervêm as autoridades para discipliná-lo, alegando que os capitais são demasiado voláteis.
Também resistente ao teste do tempo é a "lei da transferência de culpa". Ela postula "que é menos importante encontrar soluções do que ter bodes expiatórios". Imperialismo americano, capitalismo e dívida externa foram durante muito tempo bodes expiatórios, explicativos de nossa inflação e subdesenvolvimento. O bode na moda é o neoliberalismo, acusação injustíssima num país onde sobrevivem monopólios estatais e onde o grau de intervenção na vida econômica é minudente e absurdo. O Banco Central, por exemplo, sofre de aguda diarreia normativa, constituindo-se num exemplo exacerbado de neodirigismo.
Voltemos agora às libações de Londres.
Merquior
e eu raspamos a memória, à busca de dichotes históricos que nos permitissem
compendiar algumas "leis da política". Lembro-me da seguinte
coletânea de 11 leis:
1.
A lei do presidente Charles De Gaulle: "as promessas só comprometem
aqueles que as recebem.".
2. A lei de John Randolph, deputado e senador americano, pelo Estado de Virginia, e defensor da autonomia dos Estados: "o mais delicioso dos privilégios é gastar o dinheiro dos outros.".
3. A lei de Getúlio Vargas: "os ministérios se
compõem de dois grupos: um formado por gente incapaz e outro por gente capaz de
tudo.".
4. A lei de Homero: "Agamenon é pastor do povo.
Como tal protege os rebanhos, mas também tosquia a lã e come a carne dos
carneiros.".
5. A lei de Bismarck: "as leis são como as salsichas. É melhor não ver como elas são feitas.".
6. A lei de Nelson Rodrigues: "toda coerência é em
princípio suspeita.".
7. A lei de Hubert Humphrey, vice-presidente dos Estados Unidos na administração de Lyndon Johnson: "é verdade que há vários idiotas no Congresso. Mas os idiotas constituem boa parte da população e devem estar bem representados.".
8. A lei de Montesquieu: "o político deve buscar
sempre a aprovação, porém jamais o aplauso.".
E concluímos nossa noitada etílica com três leis pessimistas:
9. A lei de King Murphy: "não estão seguras a vida, a liberdade e a propriedade de ninguém enquanto a legislatura estiver em sessão.".
10. A lei do governador Mario Cuomo, de Nova York:
"faz-se campanha em poesia e governa-se em prosa."
11. E finalmente, a lei Campos-Merquior: "a política é a arte de fazer hoje os erros de amanhã, sem esquecer os erros de ontem.".
Ao
deixar a embaixada, em 1982, para me lançar candidato ao Senado por Mato
Grosso, procurei aconselhar-me com um velho amigo e guru político, Jânio
Quadros. Não bastava conhecer as leis da política. Era preciso informar-me
sobre a tecnologia eleitoral. Como conquistar votos e adquirir o "cheiro
de povo", indispensável nos comícios. Num almoço com Jânio, em sua casa de
Guarujá, procurei ansioso abeberar-me dos ensinamentos desse gênio político.
"A receita é simples", disse-me Jânio. "Faça coisas chocantes e
inesperadas. Por exemplo: dê caneladas na imprensa bisbilhoteira, maltrate os
funcionários públicos que tiranizam os contribuintes e passe pito nos bispos
que se metem na política em vez de cuidar das almas. Na televisão, fale com voz
escandida, como se fosse dono da verdade."
Saí desanimado. A receita era altamente idiossincrática. Funcionava para o Jânio, proprietário de carisma e inquilino do exótico. Seria desastre certo para um ex-seminarista e encabulado tecnocrata. Não segui a receita e consegui eleger-me a duras penas.
Após
várias experiências eleitorais, não posso senão concordar com o que nos disse,
a Merquior e a mim, num coquetel na embaixada em Londres, um parlamentar inglês
que acabava de sair, financeiramente falido, de uma campanha eleitoral:
"A democracia é uma coisa muito boa. Mas
tem um defeito fatal: a gente tem de arranjar votos. Está ainda por surgir o
maior dos gênios políticos: aquele que inventar a democracia sem votos."
Merquior morreu aos 49 anos, colhido pelas Parcas no auge de uma brilhante carreira acadêmica e diplomática, com obras seminais sobre sociologia e política, concebidas num ritmo de produtividade impressionante. A vida é injusta.
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